Ruídos Noturnos - Conto

Ruídos Noturnos

A explosão aconteceu pouco antes das cinco da manhã. Acordei de um sono profundo achando ter ouvido um trovão, afinal era novembro, época dessas coisas. Antes fosse. Quando notei as últimas voltas do ventilador em silêncio logo deduzi. Transformador na rua.

Meu sono se dissolveu por completo junto com o ruído da janela do vizinho de cima que tentava inutilmente ver qual poste fora sorteado desta vez. Levantei. E comigo se levantaram as preocupações do dia que chegaram mais cedo naquela madrugada. Ao dar a volta na cama em busca da porta olhei para ela. Seminua. Dormindo de bruços em respiração profunda. Pude sentir o mormaço começando a emanar de seu corpo já sem o toque da brisa artificial interrompida no teto. Tive vontade de beijá-la, mas meus passos sonâmbulos insistiam em me levar para a sala enquanto meu pescoço se contorcia e mantinha meus olhos no desejo.

As cortinas da sala, esvoaçavam solenemente me lembrando que eu só dormiria novamente na próxima noite. Não me zanguei. A temperatura era amena na sacada e, confortavelmente sem camisa, refleti sobre os plantonistas da companhia de energia se preparando para dirigir suas viaturas e ferramentas para o local.

Voltei da cozinha para a sacada, com um copo de chá gelado até a metade. Assistiria a cidade nascer só para passar o tempo. Não sou desses que precisa de televisão como pano de fundo para a vida. Ouvi ao longe o grito histérico de uma ambulância. Normal por aqui. Afinal, são três hospitais em um raio de setecentos metros. Debrucei no parapeito, beberiquei o chá e olhei para o semáforo na esquina. Apagado. É claro. Porque a prefeitura se importaria em fazer uma rede de alimentação separada para eles? Deixe tudo na mesma fonte e que se fodam se queimarem.

Olhei para o outro lado, no fim da minha rua lá embaixo, e consegui ver as luzes giratórias do veículo barulhento. Olhei de volta para o cruzamento e meu cérebro logo disparou: "se um carro subir a outra rua vamos precisar de mais ambulâncias por aqui".

No prédio em frente, no mesmo andar que o nosso, deu as caras o mesmo sujeito velho que sempre tentava bisbilhotar por entre nossas cortinas. De camiseta regata branca, meio amarelada pelo suor, talvez para combinar com sua eterna barba por fazer. Acendeu um cigarro e balbuciou um discreto bom dia com um levantar de queixo. Respondi.
O velho olhou para a direita. Para onde sua sacada, em ângulo de esquina, privilegiava sua visada da rua que sobe. Se deteve por um momento. A ponta do cigarro se iluminou de vermelho. Enquanto soprava a fumaça se virou para ver a ambulância que vinha ao longe.
O que veio a seguir foi perturbador. Lentamente ele olhou para mim e com um discreto, porém medonho sorriso soltou a fumaça que saiu pelo lado que o vento soprava. Deu as costas para a sacada e sumiu brevemente no escuro de seu apartamento para logo depois voltar segurando algo pequeno em uma das mãos.
Eu não me importei com o que ele segurava. Foi o sorriso bizarro que me incomodou. Aquela tinha sido a primeira vez que eu tinha visto aquele sujeito manifestar alguma emoção, por mais estranha que pudesse parecer. Por que ele sorriu? Por simples simpatia é que não era. O que ele vira na rua de baixo? Afinal de contas, apesar da lua cheia nos permitir ver um ao outro entre penumbras e brilhos escassos, aquele pedaço da cidade logo abaixo estava que era um breu só devido à sombra noturna dos edifícios.
Ele pousou o cigarro nos lábios, puxou uma velha cadeira de varanda e começou a mexer com o
objeto com as duas mãos. A pequena coisa se iluminou. Era um celular. O velho não demorou muito para resmungar algo que eu deduzi ser um palavrão por não saber usar aquele negócio direito.

Quando esbocei um pequeno sorriso jocoso a respeito daquela cena percebi um bruxulear alaranjado na rua que sobe. Era enfim o que o velho vira em sua sacada de esquina. Meu coração galopou a ponto de ouvir meus próprios batimentos. Antes mesmo de me virar para me certificar onde estava a ambulância, percebi que o motorista já desligara a sirene ao se aproximar do Hospital, que ficava a apenas uma quadra depois do cruzamento apagado. Meu cérebro gritou berrou: "A procissão da igrejinha da praça! ". Centenas de fiéis subiam silenciosamente a rua com suas velas em mãos, liderados pelo padre que empunhava um estandarte em forma de cruz.

Antes que meus olhos alcançassem a ambulância novamente, meus ouvidos foram atingidos pela onda de choque dos gritos da borracha dos pneus fritando nos paralelepípedos antigos, tentando desesperadamente parar o aríete de metal em alta velocidade.
O cedo da madrugada se tornou tarde demais para dezenas de almas. Vários impactos surdos. A imensa van branca só parou do outro lado do cruzamento, chuviscada de sangue, em meio a gritos de um lado e silêncio mórbido de outro.
Com o coração e respiração paralisados na garganta, só consegui tirar os olhos daquela cena quando o copo de chá espatifou no chão, bem ao lado dos meus pés descalços. Olhei de volta para o velho. Apontava o celular para o terror abaixo de nós. Sua boca estava aberta. Não sorria. Seu pijama denunciava uma asquerosa e doentia ereção, enquanto uma lágrima macabra escorria de apenas um de seus olhos enrugados.


Quanto mais, eu menos

Quanto mais eu avanço nos dias eu menos reconheço as pessoas.
Quanto mais eu avanço nas horas eu menos reconheço as pessoas.
Aquela que eu podia confiar sem medo de errar já não pode mais ajudar.
Tem gente que diz que pode, mas essa mesma gente é aquela gente que eu não reconheço mais.
Tem gente que me vê soturno e triste. Tem gente que me acha atravessando os lados.
Mas a maioria dessa gente nem sabe o que vê. São cegos como eu sou.
Nem minha própria gente eu reconheço mais.
Quanto mais eu avanço nas palavras com minha gente menos eu as reconheço.
Sou chamado de doente, doente da alma. Mas quem não está doente da alma?
Quanto mais eu avanço nos passos menos eu reconheço esse mundo.
Quanto mais eu avanço dentro de mim, menos me reconheço

Quanto mais, eu menos...
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